sexta-feira, 13 de junho de 2008

A ARTE OBSTETRÍCIA E O ABORTO

O texto a seguir é uma síntese que fiz da leitura de uma interessante pesquisa sobre a medicina obstétrica que foi feita através da revisão de 83 teses médicas obstétricas — produzidas tanto na Bahia quanto no Rio de Janeiro — no século XIX.

A Arte Obstétrica surgiu no Brasil no século XIX, quando, por edital de Dom João VI, é incluída nas disciplinas que inauguram as escolas de medicina e cirurgia, na Bahia e Rio de Janeiro, em 1808. Até o momento, os partos eram realizados por mulheres chamadas de aparadeiras ou de comadres. Estas detinham um saber empírico apenas e assistiam, auxiliavam as mulheres, seja no trabalho de parto e nos cuidados de
gestação e puerpério, quanto em outras circunstâncias, tais como doenças venéreas e abortos, além de contribuírem muitas vezes com o infanticídio. Na sua maioria, eram mulatas ou brancas e portuguesas e pertenciam aos setores populares. A introdução dos médicos-parteiros nesta prática deu início, não somente à investigação do corpo feminino, como também e curiosamente a produção de um saber anatômico e fisiológico da mulher, sob o olhar masculino. Historicamente, o processo da arte obstétrica se deu primeiro na Europa (nos séculos XVII e XVIII) se estendendo ao Brasil, ao se inaugurar as escolas de medicina e cirurgia na Bahia e Rio de Janeiro, em 1808. Desde o momento em que foi elaborada, esta arte centra seus estudos no parto (posteriormente sobre a gravidez) dentro do enfoque biológico, por forte influência da anatomia patológica. O discurso anátomo-patológico permitia a interrupção da gravidez, pelo parteiro (ou médico-parteiro) desde que algum sinal anatômico indicasse risco de vida para a mulher.


Diversos tratamentos terapêuticos também foram testados e analisados, inclusive aqueles indicados pelas comadres. Assim, a prática obstétrica do período incorporou infelizmente muitas das técnicas bárbaras que eram utilizadas para a interrupção de uma gravidez.


Estes métodos abortivos foram denominados de primeira classe:
1 — Centeio espigado
2 — Sangria
3 — Aplicação de sanguessugas (sugar a parte interna das coxas ou mesmo da vulva)
4 — Purgativos
5 — Diuréticos
6 — Excitantes (por exemplo, preparação de canelas)
7 — Eletro galvanismo.

Mais tarde, inclusive, Madame Durocher critica o conhecimento das aparadeiras sobre o centeio e o uso que as mesmas fazem dele nos trabalhos de aborto (Durocher, 1887). Em todas as teses defendidas por Durocher nas escolas de medicina, salvar a vida da mulher era o objetivo fundamental. N que a isso tange, o Dr. Ermínio Cézar Coutinho, da Faculdade de Medicina da Bahia, em novembro de 1858, defendendo teses sobre "Quais as circunstâncias que justificam a provocação ao aborto", o autor afirma que o aborto que possa vir colocar em risco de vida a mulher deve ser completamente rejeitado (refere-se aos casos em que a mulher esteja muito fraca e haja impedimento anatômico à gravidez — Coutinho, 1858).

Desde 1840 se percebe uma maior preocupação para questões tais como sexualidade, higiene e moral feminina. Com a chegada da Corte Portuguesa no Brasil, em 1808, ocorreu a implantação do ensino oficial de Medicina.
A primeira escola foi implantada na Bahia e decorreu de um pedido do Barão de Goyana — José Correia Picanço — que falou a D. João VI da necessidade de se criar um colégio de cirurgia.


Este concordou com a idéia e, em Carta Regia de 18 de fevereiro de 1808, assinada por D. Fernando José de Portugal, Ministro do Reino, foi determinado que Picanço fizesse o plano do curso e que escolhesse entre os cirurgiões do Hospital Militar os professores que deveriam ensinar não só Cirurgia, mas também Anatomia e Arte Obstétrica (Souza, 1967).

A segunda escola a ser autorizada por D. João VI foi a do Rio de Janeiro; isso se deu devido à sua mudança para lá no mês de fevereiro de 1808. Entre as várias medidas administrativas importantes tomadas por D. João estava o ensino médico. Pelo decreto de 5 de novembro de 1808 criou-se a Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro.

Até 1815, o ensino na Bahia continuava como antes, lecionavam-se apenas Cirurgia e Anatomia e, apesar da resolução de D. João VI, que ordenava o ensino da Arte Obstétrica, Picanço não fez qualquer referência à Obstetrícia até essa data. O plano de estudos feito por Dr. Manuel Luiz Álvares de Carvalho é implantado na Bahia em 17 de março de 1816. Neste ano, a instalação da escola passa para a Santa Casa. No novo currículo constava que, para o quarto ano, o Prof. Manuel da Silveira Rodrigues lecionaria Instruções Cirúrgicas e Obstetrícia e, no quinto ano, José Avelino Barbosa ensinaria Medicina Prática e Obstetrícia. O curso, inicialmente, foi superficial, pois a escola precisava de uma enfermaria ou serviço clínico para mulheres grávidas e parturientes em que se pudesse fazer o ensino prático da matéria que se se ensinava.


As faculdades passaram a conceder os títulos de doutor em Medicina, de farmacêutico e de parteira, sem os quais ninguém podia exercer atividades em qualquer dos ramos da arte de curar. É em 1832 que tem início o ensino oficial de Obstetrícia para mulheres, nas duas primeiras faculdades médicas. Na do Rio de Janeiro, diplomou-se em 1834 a mais célebre das parteiras, francesa de nascimento, Maria Josefina Matilde Durocher (1808-93), que era conhecida como Madame Durocher. Foi a primeira mulher membro titular, na Academia Imperial de Medicina, em 1871.

Em 1873, para o autor da Memória deste ano, o professor Matias Sampaio assim se expressou: Animado pelo mais ardente desejo, e sem ter arrefecido ainda na carreira do ensino, empenho todo o esforço de que disponho para que os estudantes se habilitem na arte de partejar; apesar do meu empenho, confesso que apenas eles adquirem conhecimentos teóricos por nos faltar ainda o ensino prático, falta sentida e contra a qual têm reclamado quase todos, senão todos os historiadores de ambas as Faculdades de Medicina do Império. Entretanto, tenho fé que um dia virá em que semelhante falta desaparecerá, dotando-nos o governo Imperial ao menos com uma pequena sala, onde sejam recebidas as parturientes (Souza, 1967).

Um obstáculo a ser superado pelos médicos na época era conseguir levar à clínica, ao hospital, ao consultório a mulher ou, também, pode-se dizer, o corpo feminino. Houve um grande esforço por parte da corporação médica em construir uma imagem do médico que inspirasse confiança na população, que era repleta de pudores. Porém, isto ainda foi pouco para conseguir levar as mulheres à presença do obstetra. Com esse impasse, o discurso médico criou como que um "jogo" com a população feminina do Brasil Império. Jogo, porque, por um lado, o discurso médico, em harmonia com os demais discursos presentes no momento, utilizando as estratégias que lhe eram permitidas pelas circunstâncias, forjou para a mulher uma nova subjetividade, que, entre as alterações imediatas que possibilitou a esta, garantiu-lhe um novo papel na sociedade, abrindo-lhe as portas para uma vida social mais intensa, esboçando-lhe nova configuração dentro do lar, da família, tornando-a, enfim, um ser bem mais vivo que a mulher da sociedade patriarcal da colônia.

Entretanto, o ponto de apoio deste discurso que criou a mulher da sociedade imperial foi a sexualidade feminina. Sexualidade que foi descrita a fundo, com acurada precisão fazendo a mulher um ser frágil e inconstante, a quem somente os médicos poderiam orientar, por serem os únicos que a conheciam. Deste "jogo" surgiram "o mito do amor materno", a "mãe dedicada", "boa esposa", "a rainha do lar", as histéricas, as mundanas e toda uma série de tipos femininos que ocupariam a literatura médica e o imaginário social do século XIX. A mulher criada no século XIX, que povoou as páginas do romance nacional, destacava-se pela sua fragilidade.

Começaram a ser aplicados os discursos moralistas e filantrópicos sobre o aleitamento materno, cujas primeiras destinatárias eram as mulheres das famílias abastadas, que continuavam possuindo empregadas com a função de amas-de-leite; sobre o abandono infantil, parcialmente explicado pelo desejo egoísta e narcisista destas em manter o corpo belo, de conservar a forma estética e pelo medo de perder o marido, a exemplo dos aristocratas franceses; sobre o infanticídio disfarçado pelas comadres (curiosas); e sobre a prática do aborto.

Enquanto decorria este processo, as prescrições médicas de aborto foram sendo reduzidas extremamente ao essencial. Verificamos que no início do século XIX a arte obstétrica priorizava a vida da mulher ao menor sinal de perigo, e as "novas" técnicas alcançadas (fórceps e cesariana) possibilitaram que o discurso fosse modificado. Atualmente se dá prioridade para que o processo finalize com uma mãe e filho sadios.

Scielo- História da Parturição séc. XIX
http://www.ipas.org.br/arquivos/Lago_Berquo_2003.doc
BRIQUET, R. Obstetrícia normal. São Paulo, Ed. São Paulo,
1971.

TEXTO ESCRITO PELA ALUNA GEORGIA

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